A chegada de uma Constituição à sua terceira década, na América Latina, é um evento digno de comemoração efusiva. Sobretudo se ela, apesar de muitos percalços, tiver conseguido ser uma Carta verdadeiramente normativa, derrotando o passado de textos puramente semânticos ou nominais. É certo que houve chuvas, trovoadas e tempestades. É inevitável em uma vida completa. No momento em que escrevo essas linhas, aliás, o céu continua bem escuro. A fotografia do quadro atual é devastadora. Porém, como se pretenderá demonstrar ao longo do presente ensaio, o filme da democracia brasileira é bom. Temos andado, no geral, na direção certa, embora certamente não na velocidade desejada. É sempre bom relembrar: a história é um caminho que se escolhe, e não um destino que se cumpre. Ao longo dos anos, a Constituição tem sido uma boa bússola. Sobre o desencanto de uma República que ainda não foi, precisamos que ela nos oriente em um novo começo.
A comemoração dos dez anos
Quando a Constituição completou a sua primeira década, escrevi um artigo intitulado “Dez anos da Constituição de 1988: foi bom para você também?”. Logo ao início do artigo, eu voltava o relógio no tempo a 20 anos antes, ao ano de 1978, quando começara o movimento pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Escrevi, então:
“O País ainda se recuperava do trauma do fechamento do Congresso Nacional para outorga do Pacote de Abril, conjunto de reformas políticas que eliminavam quaisquer riscos de acesso da oposição a alguma fatia de poder. Os atos institucionais que davam poderes ditatoriais ao Presidente da República continuavam em vigor. O bipartidarismo artificial, a cassação de mandatos parlamentares e casuísmos eleitorais diversos falseavam a representação política. A imprensa ainda enfrentava a censura. Havia presos políticos nos quartéis e brasileiros exilados pelo mundo afora”.
Em seguida, o texto dava um salto no tempo para o ano de 1998, ocasião da celebração dos dez anos, quando então anotei:
“Mova-se o relógio, agora, de volta para o presente. Estamos no final do ano de 1998. Refazendo-se da longa trajetória, o intrépido viajante intertemporal contempla a paisagem que o cerca, enebriado pelo marcante contraste com a aridez que deixara para trás: a Constituição vige com supremacia, há liberdade partidária, eleições livres em todos os níveis, liberdade de imprensa e uma sociedade politicamente reconciliada.
(…) [É] inegável: sem embargo das dificuldades, dos avanços e dos recuos, das tristezas e decepções do caminho, a história que se vai aqui contar é uma história de sucesso. Um grande sucesso.
Sorria. Você está em uma democracia”.
O tom moderadamente otimista, sem ignorar os múltiplos obstáculos e dificuldades, marcou, ao longo do tempo, minha percepção da Constituição e do avanço institucional brasileiro.
A comemoração dos vinte anos
Por ocasião do vigésimo aniversário da Constituição, voltei ao tema, escrevendo um longo artigo denominado “Vinte anos da Constituição brasileira de 1988: o Estado a que chegamos”. Na abertura do texto, consignei:
“Percorremos um longo caminho. Duzentos anos separam a vinda da família real para o Brasil e a comemoração do vigésimo aniversário da Constituição de 1988. Nesse intervalo, a colônia exótica e semi-abandonada tornou-se uma das dez maiores economias do mundo. O Império de viés autoritário, fundado em uma Carta outorgada, converteu-se em um Estado constitucional democrático e estável, com alternância de poder e absorção institucional das crises políticas. (…) A Constituição de 1988 representa o ponto culminante dessa trajetória, catalizando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional. Nem tudo foram flores, mas há muitas razões para celebrá-la”.
Após análise detida das instituições e dos governos que se sucederam no período, assinalei na conclusão:
“O modelo vencedor chegou ao Brasil com atraso, mas não tarde demais, às vésperas da virada do milênio. Os últimos vinte anos representam, não a vitória de uma Constituição específica, concreta, mas de uma ideia, de uma atitude diante da vida. O constitucionalismo democrático, que se consolidou entre nós, traduz não apenas um modo de ver o Estado e o Direito, mas de desejar o mundo, em busca de um tempo de justiça, fraternidade e delicadeza. Com as dificuldades inerentes aos processos históricos complexos e dialéticos, temos nos libertado, paulatinamente, de um passado autoritário, excludente, de horizonte estreito. E vivido as contradições inevitáveis da procura do equilíbrio entre o mercado e a política, entre o privado e o público, entre os interesses individuais e o bem coletivo. Nos duzentos anos que separam a chegada da família real e o vigésimo aniversário da Constituição de 1988, passou-se uma eternidade”.
O futuro parecia ter chegado, com atraso mas não tarde demais, no final da primeira década dos anos 2000. Em sua edição de 12 de novembro de 2009, a revista The Economist, uma das mais influentes do mundo, estampou na capa uma foto do Cristo Redentor elevando-se como um foguete, sob o título “Brazil takes off” (“O Brasil decola”). Tendo escapado da crise de 2007 com poucas escoriações, o país voltara a crescer a taxas anuais superiores a 5%. Exibindo prestígio internacional, havia sido escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014, as Olimpíadas de 2016 e pleiteava uma vaga no Conselho de Segurança da Nações Unidas. Investimentos internacionais abundavam e o preço das commodities bombava.
O foguete, porém, aparentemente, não conseguiu sair da atmosfera e libertar-se da gravidade das muitas forças do atraso. Quatro anos depois, a mesma The Economist, em sua edição de 28 de setembro de 2013, foi portadora das más notícias. Na nova capa, o Cristo Redentor dava um looping e descia em queda livre. A aterrisagem não seria suave. O ciclo de prosperidade parecia ter chegado ao fim. Na sequência, veio o impeachment, que foi um trauma para o país. Uma vez mais, fomos do ufanismo à depressão. Não foi pequeno o tombo.
Apesar do desalento, procurei demonstrar, à época, que embora o futuro não tivesse chegado, como se supôs, ele continuava à espera. Em palestra na Universidade de Oxford, assim me manifestei para uma plateia que tinha muitos mestrandos e doutorandos brasileiros:
“E devo dizer, por implausível que possa parecer nessa hora, que avisto um horizonte promissor. Assim que começarmos a andar na direção certa, a confiança voltará e as perspectivas continuam favoráveis. Há múltiplos lados para onde crescer: estradas, aeroportos, portos, ferrovias, saneamento, habitação popular – não faltam demandas. Em outro front, precisamos investir em educação, pesquisa científica e tecnológica, incentivar a inovação, fazer parcerias com grandes centros. E, ainda, na lista dos problemas crônicos, precisamos de reforma política, reforma da previdência, reforma tributária. Há muito por fazer e muitas razões para ser moderadamente otimista”.
Parece que foi logo ali, na esquina do tempo, que tudo começou. Mas lá se vão três décadas.
A Constituição de trinta anos
O título do presente tópico baseia-se no livro do escritor francês Honoré de Balzac, escrito entre 1829 e 1842, chamado A mulher de trinta anos (“La femme de trente ans”). A obra ficou célebre, menos pela qualidade literária – não é considerada um dos pontos altos da produção literária do autor –, mas por ter consagrado o termo “balzaquiana” para se referir às mulheres na casa dos 30. O enredo conta a história de uma jovem que viveu um casamento infeliz por muitos anos, só vindo a encontrar o verdadeiro amor depois dos 30 anos. A narrativa valoriza a idade mais avançada – em uma época em que as protagonistas mal haviam chegado aos 20 anos –, enfatizando a maturidade em lugar do romantismo e a capacidade de se reinventar após sofrimentos diversos. Até aqui, o livro parecia oferecer uma boa alegoria para o momento brasileiro. Mas na verdade não é. Quem ler a história até o fim verá que ela acumula tristeza, tragédia e melancolia. Não há de ser o nosso caso nem o nosso destino.
Sem fechar os olhos às vicissitudes desses últimos trinta anos, o texto que se segue procura lançar um olhar crítico, positivo e construtivo sobre esse período da vida institucional brasileira. Após uma breve nota pessoal, destaco os pontos altos e os desencontros dessas últimas décadas, concluindo com uma reflexão sobre o momento atual. Pessoalmente, devo dizer que minhas expectativas continuam elevadas, inspiradas por uma passagem antológica atribuída a Michelângelo, que me anima nos momentos difíceis:
“O maior perigo, para a maioria de nós
não é que o alvo seja muito alto
E não se consiga alcançá-lo.
É que ele seja muito baixo
E a gente consiga”.
Minha relação com a Constituição
Minha relação com a Constituição de 1988 e com o direito constitucional é antiga, constante e fiel. Começou em 1978, quando eu estava no 3º ano da Faculdade de Direito e compareci a um ato público na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Era a deflagração do movimento pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, como exigiam as palavras de ordem da época. Não havia mais do que 200 pessoas na manifestação. Quase ninguém interrompera a sua rotina para aderir a uma reivindicação tão distante e abstrata. O futuro não parecia promissor.
Ainda assim, jamais me distanciei do rumo que ali se delineou. Desde então, tenho me dedicado ao direito constitucional, sem seguir inteiramente o conselho do meu pai, que me dizia: “Estuda processo civil”. Aos poucos, fui acumulando informações e lendo os autores da época: Afonso Arinos de Mello Franco, Paulino Jacques, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Pinto Ferreira. Logo à frente vieram os portugueses, na onda da redemocratização de Portugal: J.J. Gomes Canotilho e Jorge Miranda. Apesar da excelência de muita coisa que li, eu queria fazer algo diferente daquele direito constitucional que era essencialmente descritivo das instituições políticas – entremeado de reflexões históricas e sociológicas –, sem muita preocupação com a concretização dos mandamentos constitucionais. Vaguei algum tempo pelo deserto, até que um dia encontrei o meu caminho.
Após ter lido alguns textos seminais de José Afonso da Silva, Konrad Hesse, Celso Antonio Bandeira de Mello, Vezio Crisafulli, bem como Bernard Schwartz e outros americanos, descobri o que me pareceu ser a demanda mais premente do direito constitucional brasileiro naquela quadra histórica: o casamento com o processo civil. E, assim, de certa forma, pude seguir o conselho de meu pai. Para isso, foi de grande valia ter sido aluno de José Carlos Barbosa Moreira, um dos maiores juristas e processualistas que o país já teve, com quem aprendi muito. Passei então a refletir e a escrever sobre a concretização da Constituição perante o Poder Judiciário, defendendo a sindicabilidade judicial das normas constitucionais, inclusive e sobretudo, as que consagravam direitos fundamentais. Isso pode parecer óbvio nos dias de hoje, mas a ideia de que a Constituição era um documento jurídico, dotado de aplicabilidade direta e imediata, era revolucionária naqueles dias e enfrentava grande resistência. Muita gente olhava de banda para a novidade.
Meus primeiros trabalhos acadêmicos de maior expressão foram sobre a efetividade das normas constitucionais, isto é, os limites e possibilidades de concretização da Constituição. Por quase uma década dediquei-me ao tema, viajando pelo país em eventos acadêmicos e congressos, pregando esse novo paradigma e tentando conquistar corações e mentes. Consolidada a ideia de normatividade e de cumprimento efetivo da Constituição, dediquei os anos seguintes ao estudo da intepretação constitucional, que passou a exigir uma dogmática mais sofisticada nesse novo cenário de aplicação ampla, onde ocorriam colisões de direitos, necessidade de ponderação e de resgate da argumentação jurídica. Na sequência histórica, participei do processo de reaproximação do direito constitucional com a filosofia moral, o desenvolvimento de uma cultura pós-positivista e da leitura de todo o ordenamento jurídico à luz dos valores e princípios constitucionais. O Judiciário se tornava um ator decisivo na realização dos direitos fundamentais. Surgia um novo direito constitucional.
A efetividade da Constituição – i.e., sua concretização perante os tribunais – avançou tanto que, ultimamente, tenho feito reflexões sobre os riscos da judicialização excessiva em determinadas áreas. A esse propósito, judicialização e ativismo judicial se tornaram debates imprescindíveis na atualidade brasileira. E, nos últimos tempos, tenho me dedicado ao estudo dos papéis das supremas cortes e tribunais constitucionais, que divido em contramajoritário, representativo e iluminista. Este foi o tema do meu debate recente na Faculdade de Direito de Harvard, com o professor Mark Tushnet, e é o objeto de artigo que será publicado proximamente pelo American Journal of Constitutional Law, na versão em inglês, e pela Revista Direito e Práxis, na versão em português.
Simultaneamente à minha carreira acadêmica, tive uma atuação relativamente intensa como advogado na área. Era um tempo em que os advogados nem tinham Constituição no escritório. Os civilistas usavam o Código Civil e o Código de Processo Civil. Os criminalistas, o Código Penal e o Código de Processo Penal. Os advogados trabalhistas utilizavam a CLT. O direito societário começava a se desenvolver, após a promulgação da Lei da Sociedades por Ações. Pois bem: em um dos meus primeiros casos, comecei a trabalhar com a Constituição. Postulei a anulação de um ato administrativo do diretor do Observatório Nacional, que criara obstáculo à pesquisa de seu principal astrônomo, com entraves burocráticos. Invoquei o art. 179, parágrafo único da Constituição de 1967-69, que previa que “O Poder Público incentivará a pesquisa e o ensino científico e tecnológico”. Sustentei, então, que normas conhecidas como “programáticas”, como esta, não permitiam que se exigisse um comportamento positivo. Porém, serviam como fundamento para se exigir uma abstenção, isto é, que o Poder Público não embaraçasse a pesquisa. Deu certo e foi feito um acordo. Começava ali um novo ramo de atividade jurídica, que era a do advogado constitucionalista.
Com o tempo, a vida me propiciou testar muitas das ideias que havia desenvolvido academicamente em ações perante os tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal. Dentre os casos de mais visibilidade estiveram, por exemplo, (i) o direito de as mulheres interromperem a gestação no caso de gravidez de um feto anencefálico e, consequentemente, inviável; (ii) a proibição do nepotismo no Poder Judiciário (depois estendida aos três Poderes); (iii) a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais; e (iv) a defesa das pesquisas com células-tronco embrionárias. Todos eles envolviam a aplicação direta e criativa da Constituição. E, mais à frente, já como ministro do Supremo Tribunal Federal, segui fiel às minhas ideias, em decisões envolvendo ações afirmativas para negros, direitos das mulheres, gays e transgêneros, liberdade de expressão, restrição ao foro privilegiado e direito à interrupção da gestação no primeiro trimestre, para citar algumas.
E assim se passaram os anos. Presto esse breve depoimento na primeira pessoa porque a minha vida acadêmica, de advogado e, agora, de juiz constitucional desenvolveu-se em conexão profunda com a Constituição. Uma convivência intensa, que me trouxe realizações intelectuais, proveitos materiais e algumas frustrações. Poucas, felizmente. Mesmo assim, trinta anos representam uma data emblemática e constituem um bom marco para discutir a relação. Uma DR básica. Aqui vai ela.
Alguns pontos altos
Estabilidade institucional
Desde o fim do regime militar e, sobretudo, tendo como marco histórico a Constituição de 1988, o Brasil vive o mais longo período de estabilidade institucional de sua história. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, o país conviveu com a persistência da hiperinflação – de 1985 a 1994 –, com sucessivos planos econômicos que não deram certo – Cruzado I e II (1986), Bresser (1987), Collor I (1990) e Collor II (1991) – e com escândalos em série, que incluem o dos “Anões do Orçamento”, o “Mensalão”, a “Operação Lava-Jato” e duas denúncias criminais contra o Presidente em exercício, para citar os de maior visibilidade. A tudo isso se soma o trauma de dois impeachments de Presidentes da República eleitos pelo voto popular: o de Fernando de Collor, em 1992, com adesão majoritária da sociedade; e o de Dilma Roussef, em 2016, que produziu um ressentimento político sem precedente na história do Brasil.
Todas essas crises foram enfrentadas dentro do quadro da legalidade constitucional. É impossível exagerar a importância desse fato, que significa a superação de muitos ciclos de atraso. O Brasil sempre fora o país do golpe de Estado, da quartelada, das mudanças autoritárias das regras do jogo. Desde que Floriano Peixoto deixou de convocar eleições presidenciais, ao suceder Deodoro da Fonseca, até a Emenda Constitucional nº 1/1969, quando os Ministros militares impediram a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, o golpismo foi uma maldição da República. Pois tudo isso é passado. Na sucessão de crises recentes, o Supremo Tribunal Federal evitou mudanças casuísticas nas regras do impeachment, embora, lamentavelmente, em momentos subsequentes, tenha sido casuístico em outros pontos da sua própria jurisprudência. Já as Forças Armadas têm mantido o comportamento exemplar que adotaram desde a redemocratização do país. Em suma: trinta anos de estabilidade institucional, apesar de tudo. Nessa matéria, só quem não soube a sombra não reconhece a luz.
Estabilidade monetária
Todas as pessoas no Brasil que têm 40 anos ou mais viveram uma parte de sua vida adulta dentro de um contexto econômico de hiperinflação. A memória da inflação é um registro aterrador. Os preços oscilavam diariamente, quem tinha capital mantinha-o aplicado no overnight e quem vivia de salário via-o desvalorizar-se a cada hora. Generalizou-se o uso da correção monetária – reajuste periódico de preços, créditos e obrigações de acordo com determinado índice –, que realimentava drasticamente o processo inflacionário. Até hoje, um percentual relevante de ações que tramitam perante a Justiça brasileira está relacionado a disputas acerca da correção monetária e de diferentes planos econômicos que interferiram com sua aplicação. Pois bem: com o Plano Real, implantado a partir de 1º de julho de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso era Ministro da Fazenda, a inflação foi finalmente domesticada, tendo início uma fase de estabilidade monetária, com desindexação da economia e busca de equilíbrio fiscal.
Este é outro marco histórico cuja importância é impossível de se exagerar. Para que se tenha uma ideia do tamanho do problema, a inflação acumulada no ano de 1994, até o início da circulação da nova moeda, o real, que se deu em 1º de julho, era de 763,12%. Nos 12 meses anteriores, fora de 5.153,50%. A inflação, como se sabe, é particularmente perversa com os pobres, por não terem como se proteger da perda do poder aquisitivo da moeda. Como consequência, ela agravava o abismo de desigualdade do país. Em uma década de democracia e de poder civil, iniciado em 1985, o país consolidou a vitória sobre a ditadura e sobre a inflação. Em desdobramento da estabilidade monetária, entrou na agenda da sociedade a percepção da importância da responsabilidade fiscal. Embora não seja uma batalha totalmente ganha, aos poucos foi se consolidando a crença de que se trata de uma premissa das economias saudáveis. Responsabilidade fiscal não tem ideologia, não é de direito ou de esquerda. A não observância da regra básica de não se gastar mais do que se arrecada traz como consequências o aumento de juros ou a volta da inflação, disfunções que penalizam drasticamente as pessoas mais pobres.
Inclusão social
A pobreza e a desigualdade extrema são marcas indeléveis da formação social brasileira. Apesar de subsistirem indicadores ainda muito insatisfatórios, os avanços obtidos desde a redemocratização são muito significativos. De acordo com o IPEA, de 1985 a 2012, cerca de 24,5 milhões de pessoas saíram da pobreza, e mais 13,5 milhões não estão mais em condições de pobreza extrema. Ainda segundo o IPEA, em 2012 havia cerca de 30 milhões de pessoas pobres no Brasil (15,93% da população), das quais aproximadamente 10 milhões em situação de extrema pobreza (5,29% da população). Infelizmente, a crise econômica dos últimos anos impactou de forma negativa esses números. Entre 2014 e 2015, o desemprego e a queda de renda levaram de volta à pobreza 4,1 milhões de brasileiros, dos quais 1,4 milhão estão em pobreza extrema. A reversão de expectativas é, evidentemente, dramática, mas não elimina o saldo extremamente positivo obtido ao longo de muitos anos. E com a retomada do crescimento econômico no ano de 2018, espera-se a recuperação desses indicadores sociais.
Merece registro, também, o Programa Bolsa Família, implantado a partir do início do Governo Lula, em 2003, que unificou e ampliou diversos programas sociais existentes. Conforme dados divulgados em 2014, retratando uma década de funcionamento, o Programa atendia cerca de 13,8 milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de pessoas, quase um quarto da população brasileira. No início de 2018, os números eram essencialmente os mesmos. Apesar de enfrentar críticas e problemas administrativos, o Programa Bolsa Família recebeu apoio de diversos organismos das Nações Unidas.
Nas últimas três décadas, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH do Brasil, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi o que mais cresceu entre os países da América Latina e do Caribe. Nessas três décadas, os brasileiros ganharam 11,2 anos de expectativa de vida e viram a renda aumentar em 55,9%. Na educação, a expectativa de estudo para uma criança que entra para o ensino em idade escolar cresceu 53,5% (5,3 anos). Segundo dados do IBGE/PNAD, 98,4% das crianças em idade compatível com o ensino fundamental (6 a 14 anos) estão na escola. Os avanços, portanto, são notáveis. Porém, alguns dados ainda são muito ruins: o analfabetismo atinge ainda 13 milhões de pessoas a partir de 15 anos (8,5% da população) e o analfabetismo funcional (pessoas com menos de 4 anos de estudo) alcança 17,8% da população.
Também aqui, infelizmente, o impacto da crise econômica dos últimos anos trouxe estagnação. De acordo com os dados do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado em 2017, com base em informações de 2015, o IDH brasileiro, pela primeira vez desde 2004, deixou de apresentar crescimento. Na verdade, houve pequenos avanços em termos de expectativa de vida e escolaridade, mas decréscimo na renda per capita. Também no tocante à desigualdade, houve avanços expressivos, mas este continua a ser um estigma para o país, como atesta o coeficiente GINI, que mede a desigualdade de renda. Somos o décimo país mais desigual do mundo. O Brasil ostenta uma incômoda 79a posição em matéria de justa distribuição de riqueza. Em suma: apesar de algum retrocesso recente, o balanço da inclusão social no Brasil nos últimos 30 anos é extremamente positivo e merece ser celebrado.
O destaque maior: o avanço dos direitos fundamentais
Uma Constituição tem dois propósitos principais: (i) organizar e limitar o exercício do poder político, assegurando o governo da maioria e estabelecendo as regras do jogo democrático; e (ii) definir os direitos fundamentais do povo, instituindo mecanismos para a sua proteção. Os dois grandes papeis das supremas cortes e dos tribunais constitucionais são, precisamente, assegurar o respeito às regras da democracia e proteger os direitos fundamentais. Este foi um dos domínios em que a Constituição e o Supremo Tribunal Federal se saíram particularmente bem nos últimos 30 anos.
Este tópico destaca os direitos fundamentais, que correspondem aos direitos humanos incorporados aos ordenamentos jurídicos internos. Direitos humanos são uma combinação de conquistas históricas, valores morais e razão pública, fundados na dignidade humana, que visam à proteção da vida, da liberdade, da igualdade e da justiça. E – por que não? –também a busca da felicidade. Embora tenham uma dimensão jusnaturalista, eles são normalmente incorporados aos ordenamentos jurídicos domésticos, sendo rebatizados como direitos fundamentais. Significam a positivação pelo Estado dos direitos morais de cada indivíduo. Uma reserva mínima de justiça a ser assegurada a todas as pessoas.
Veja-se, em enunciação esquemática, alguns marcos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nessa área:
Liberdade individual: (i) proibição da prisão por dívida no caso de depositário infiel, reconhecendo a eficácia e prevalência do Pacto de San Jose da Costa Rica em relação ao direito interno; (ii) declaração da inconstitucionalidade da proibição de progressão de regime, em caso de delitos associados a drogas; e (iii) o Tribunal sinaliza com a descriminalização do posse de drogas (ou ao menos maconha) para consumo pessoal;
Moralidade administrativa (direito à boa governança): (i) proibição do nepotismo; (ii) inconstitucionalidade do modelo de financiamento eleitoral por empresas sem restrições mínimas que preservassem a decência política e evitasse a corrupção; (iii) validação ampla da Lei da Ficha Limpa;
Direito à saúde: determinação de fornecimento de gratuito de medicamentos necessários ao tratamento da AIDS em pacientes sem recursos financeiros;
Direito à educação: direito à educação infantil, aí incluídos o atendimento em creche e o acesso à pré-escola. Dever do Poder Público de dar efetividade a esse direito;
Direitos políticos: proibição de livre mudança de partido após a eleição para cargo proporcional, sob pena de perda do mandato, por violação ao princípio democrático;
Direitos dos trabalhadores públicos: regulamentação, por via de mandado de injunção, do direito de greve dos servidores e trabalhadores do serviço público;
Direito dos deficientes físicos: direito de passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual a pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes;
Proteção das minorias:
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Judeus: a liberdade de expressão não inclui manifestações de racismo, aí incluído o anti-semitismo;
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Negros: (i) validação de ações afirmativas em favor de negros, pardos e índios para ingresso na universidade (ii) no acesso a cargos públicos e (iii) proteção aos quilombolas;
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Comunidade LGBT: equiparação das relações homoafetivas às uniões estáveis convencionais e direito ao casamento civil.
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Comunidades indígenas: demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol em área contínua;
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Transgêneros: direito à alteração do nome social, com ou sem cirurgia de redesignação de sexo;
Liberdade de pesquisa científica: declaração da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Liberdade de expressão: inconstitucionalidade da exigência de autorização prévia da pessoa retratada ou de seus familiares para a divulgação de obras biográficas;
Direito das mulheres: (i) direito à antecipação terapêutica do parto em caso de feto anencefálico; (ii) constitucionalidade da Lei Maria da Penha, que reprime a violência doméstica contra a mulher; (iii) direito à interrupção da gestação até o 3º mês de gestação (decisão da 1ª. Turma);
Ética animal: proibição da submissão de animais a tratamento cruel, como nos casos de (i) briga de galo, (ii) farra do boi e (iii) vaquejada.
Por evidente, nenhum tribunal do mundo acerta todas. Até porque a verdade não tem dono e há diferentes pontos de observação da vida. Pessoalmente, incluiria em qualquer futura antologia de equívocos jurídicos julgados como o que (i) deu permissão para o ensino religioso confessional em escolas públicas (i.e., autorizou a doutrinação religiosa no espaço público), (ii) a declaração de inconstitucionalidade da cláusula de barreira (dando causa à multiplicação descontrolada de partidos de aluguel) e (iii) a manutenção do monopólio (privilégio) postal da Empresa de Correios e Telégrafos (na era da internet!). Sem mencionar sustos como a defesa da distribuição compulsória de fosfoetanolamina (a “pílula do câncer”), sem pesquisa clínica ou registro na ANVISA, que teve medida cautelar deferida e quatro votos a favor.
Porém, também aqui, o saldo dos últimos trinta anos é extremamente positivo. Poucos países do mundo têm um número tão expressivo de decisões progressistas e civilizatórias em tema de direitos fundamentais.
Os pontos fracos desses 30 anos
O sistema político
Há exatos dez anos, em meu texto sobre os vinte anos da Constituição, abri um tópico específico para “as coisas que ficaram por fazer”. Estampando a evidência, consignei, a propósito da reforma do sistema político:
“Nos vinte anos de sua vigência, o ponto baixo do modelo constitucional brasileiro e dos sucessivos governos democráticos foi a falta de disposição ou de capacidade para reformular o sistema político. No conjunto de desacertos das últimas duas décadas, a política passou a ser um fim em si mesma, um mundo à parte, desconectado da sociedade, visto ora com indiferença, ora com desconfiança. As repetidas crises produzidas pelas disfunções do financiamento eleitoral, pelas relações oblíquas entre Executivo e parlamentares e pelo exercício de cargos públicos para benefício próprio têm trazido, ao longo dos anos, uma onda de ceticismo que abate a cidadania e compromete sua capacidade de indignação e de reação. A verdade, contudo, é que não há Estado democrático sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem parlamento atuante e investido de credibilidade. É preciso, portanto, reconstruir o conteúdo e a imagem dos partidos e do Congresso, assim como exaltar a dignidade da política. O sistema político brasileiro, por vicissitudes diversas, tem desempenhado um papel oposto ao que lhe cabe: exacerba os defeitos e não deixa florescer as virtudes”.
Pouca coisa mudou de lá para cá. Todas as pessoas trazem em si o bem e o mal. O processo civilizatório existe para potencializar o bem e reprimir o mal. O sistema político brasileiro faz exatamente o contrário. O sistema político envolve o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo), o sistema eleitoral (proporcional, majoritário ou misto) e o sistema partidário (regras que regem a criação e o funcionamento dos partidos políticos). Temos problemas nos três. A grande dificuldade, nessa matéria, é que as reformas de que o país precisa dependem, para serem feitas democraticamente, como se impõe, da deliberação de pessoas cujos interesses são afetados pelas mudanças necessárias.
Como sistema de governo, eu proponho a atenuação do hiperpresidencialismo brasileiro com um modelo semipresidencialista, inspirado pelo que existe na França e em Portugal. Na minha proposta, o Presidente da República seria eleito por voto direto e conservaria competência importantes, mas limitadas – como, por exemplo, a condução da política internacional, a indicação de embaixadores e de ministros de tribunais superiores, a nomeação dos comandantes militares –, inclusive a de nomear o Primeiro Ministro, que, todavia, dependeria de aprovação do Congresso. Já ao Primeiro Ministro caberia a condução do dia a dia da política, sujeito às turbulências próprias função. Em caso de perda de sustentação política, poderia ser substituído pela vontade majoritária do Congresso, sem que isso importasse quebra da legalidade constitucional. Defendo esta ideia desde a proposta de reforma política que escrevi e publiquei em 2006. E penso que se esta fórmula estivesse em vigor, teríamos evitado o trauma do impeachment recente.
Mas não é o sistema de governo que está no centro das discussões atuais, mas sim o sistema eleitoral e o sistema partidário. A eles são dedicados os parágrafos que se seguem. Todos perdem com a persistência de um modelo que produziu um perigoso descolamento entre a classe política e a sociedade civil. A reforma política de que o Brasil precisa deverá ser capaz de atender três objetivos: (i) baratear o custo das eleições; (ii) aumentar a representatividade democrática dos eleitos; e (iii) facilitar a governabilidade.
No tocante à necessidade de barateamento, a demonstração é singela e socorre-se de pura aritmética. Em valores calculados parcimoniosamente, um deputado federal precisa gastar, para ter chance de se eleger, entre 5 e 10 milhões de reais. Ao longo de quatro anos de mandato, o máximo que conseguirá arrecadar, a título de subsídios, em valores líquidos, será 1,1 milhão de reais. Não é difícil intuir que a diferença terá de ser buscada em algum lugar. Aí está uma das grandes fontes de corrupção no país. No tocante à necessidade de incrementar a representatividade dos parlamentares, tampouco é difícil ilustrar a disfunção existente. O sistema eleitoral, relativamente à eleição para a Câmara dos Deputados, é o proporcional em lista aberta. Nesse sistema, o eleitor vota em quem ele quer, mas elege quem ele não sabe, porque o voto vai, em última análise, para o partido. Os mais votados do partido obtêm as vagas, de acordo com o número de vezes que o partido preencha o quociente eleitoral. Na prática, menos de 10% dos Deputados são eleitos com votação própria; mais de 90% são eleitos pela transferência de votos feita pelo partido. Tem-se, assim, uma fórmula em que o eleitor não sabe exatamente quem elegeu e o candidato não sabe exatamente a quem prestar contas. Não tem como funcionar.
Por fim, no tocante à governabilidade, o fato é que o sistema partidário impõe ao Executivo práticas reiteradas de fisiologismo e favorecimentos. As regras em vigor fomentam a multiplicação de partidos e a criação de legendas de aluguel. Disso resulta uma legião de agremiações irrelevantes para a sociedade, mas com atuação no Congresso, que vivem da apropriação privada do Fundo Partidário por seus dirigentes e da venda do tempo de televisão. Vale dizer: trata-se da institucionalização da desonestidade. Repleta de incentivos errados, a política deixa de ser a disputa pela melhor forma de realizar o interesse público e o bem comum, e passa a ser um negócio privado. A denominada “janela partidária”, criada pelo Congresso Nacional por emenda à Constituição – permissão, por 30 dias, da troca de partido sem perda do mandato – gerou o que a imprensa e os próprios parlamentares denominaram de “leilão de deputados”. A própria expressão já denota a desmoralização do modelo.
A reforma precisa conciliar muitos interesses legítimos e encontrar um caminho do meio, com concessões recíprocas e consensos possíveis. Uma ideia que tem amplo curso é a adoção de um sistema distrital misto, inspirado no alemão, em que metade das cadeiras da Câmara seria preenchida por voto distrital e a outra metade pelo voto no partido. O eleitor, assim, teria direito a dois votos: o primeiro para a escolha do representante do seu distrito, onde cada partido lançaria um candidato, sendo os distritos demarcados em função de quantitativos populacionais. O segundo voto seria no partido. O voto seria em lista, mas o eleitor teria a faculdade de mudar a ordem de preferência dos candidatos. O candidato que obtivesse individualmente o quociente eleitoral furaria a lista. Ao final do pleito, faz-se o ajuste necessário para preservar a proporcionalidade entre votação e número de cadeiras.
No tocante ao sistema partidário, a Emenda Constitucional nº 97, de 4.10.2017, instituiu cláusula de desempenho eleitoral para acesso dos partidos ao fundo partidário e ao tempo de rádio e TV e proibiu coligações partidárias em eleições proporcionais a partir de 2020. A possibilidade de coligações e a ausência de cláusula de barreira contribuem para manter vivas legendas vazias de representatividade e conteúdo programático, produzindo uma fragmentação no Legislativo que acaba exigindo o “toma-lá-dá-cá” do fisiologismo.
Quanto ao financiamento eleitoral, o melhor modelo é o misto, que combina financiamento público, via propaganda eleitoral gratuita e fundo partidário, como já temos hoje, e financiamento privado, mas só por pessoas físicas e com limite máximo de contribuição. O modelo anterior que tínhamos, de financiamento por empresas, era contrário à moralidade administrativa e à decência política porque:
a) uma empresa podia tomar dinheiro emprestado no BNDES e utilizar para financiar os candidatos da sua escolha, isto é, usava o dinheiro que era de todos para bancar seus interesses privados;
b) uma empresa podia financiar, por exemplo, os três candidatos que tinham chance de vitória. Naturalmente, se financia candidatos concorrentes, não está exercendo direito político, para quem acha que empresa tem direito político. Quando isso ocorre, ou a empresa foi achacada ou está comprando favores futuros. Qualquer uma das duas opções é péssima;
c) uma empresa podia fazer doação de campanha e depois ser contratada pelo governo que ajudou a eleger. E, aí, o favor privado, que foi a doação de campanha, é pago com dinheiro público, que é o contrato com a Administração.
A reforma política é uma agenda inacabada no Brasil. Tal como no combate à inflação, em outras épocas, temos andado em círculos e feito opções equivocadas, tanto legislativa quanto jurisprudencialmente, aprofundando e realimentando problemas. O país precisa de um Plano Real para a política.
A corrupção sistêmica
É impossível não identificar as dificuldades em superar a corrupção sistêmica como um dos pontos baixos desses últimos trinta anos. O fenômeno vem em processo acumulativo desde muito longe e se disseminou, nos últimos tempos, em níveis espantosos e endêmicos. Não foram falhas pontuais, individuais. Foi um fenômeno generalizado, sistêmico e plural, que envolveu empresas estatais, empresas privadas, agentes públicos, agentes privados, partidos políticos, membros do Executivo e do Legislativo. Havia esquemas profissionais de arrecadação e distribuição de dinheiros desviados mediante superfaturamento e outros esquemas. Tornou-se o modo natural de se fazerem negócios e de se fazer política no país. A corrupção é fruto de um pacto oligárquico celebrado entre boa parte da classe política, do empresariado e da burocracia estatal para saque do Estado brasileiro.
A fotografia do momento atual é devastadora: a) o Presidente da República foi denunciado duas vezes, por corrupção passiva e obstrução de justiça, e é investigado em dois outros inquéritos; b) um ex-Presidente da República teve a condenação por corrupção passiva confirmada em segundo grau de jurisdição; c) outro ex-Presidente da República foi denunciado criminalmente por corrupção passiva; c) dois ex-chefes da casa civil foram condenados criminalmente, um por corrupção ativa e outro por corrupção passiva; d) o ex-Ministro da Secretaria de Governo da Presidência da República está preso, tendo sido encontrados em apartamento supostamente seu 51 milhões de reais; e) dois ex-presidentes da Câmara dos Deputados estão presos, um deles já condenado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas; f) um presidente anterior da Câmara dos Deputados foi condenado por peculato e cumpriu pena; g) mais de um ex-governador de Estado se encontra preso sob acusações de corrupção passiva e outros crimes; h) todos os conselheiros (menos um) de um Tribunal de Contas estadual foram presos por corrupção passiva; i) um Senador, ex-candidato a Presidente da República, foi denunciado por corrupção passiva.
Alguém poderia supor que há uma conspiração geral contra tudo e contra todos! O problema com esta versão são os fatos: os áudios, os vídeos, as malas de dinheiro, os apartamentos repletos, assim como as provas que saltam de cada compartimento que se abra. É impossível não sentir vergonha pelo que aconteceu no Brasil. Por outro lado, poucos países no mundo tiveram a coragem de abrir as suas entranhas e enfrentar o mal atávico da corrupção com a determinação que boa parte da sociedade brasileira e uma parte do Poder Judiciário têm demonstrado. Para isso têm contribuído mudanças de atitude das pessoas e das instituições, assim como alterações na legislação e na jurisprudência. Há uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo na sociedade brasileira, e esta é a energia que muda paradigmas e empurra a história.
Como seria de se esperar, o enfrentamento à corrupção tem encontrado resistências diversas, ostensivas e dissimuladas. A Nova Ordem que se está pretendendo criar atingiu pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. Para combatê-la, uma enorme Operação Abafa foi deflagrada em várias frentes. Entre os representantes da Velha Ordem, há duas categorias bem visíveis: (i) a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e (ii) um lote pior, que é o dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente. Gente que tem aliados em toda parte: nos altos escalões, nos Poderes da República, na imprensa e até onde menos seria de se esperar. Mesmo no Judiciário ainda subsiste, em alguns espaços, a mentalidade de que rico não pode ser preso, não importa se corrupto, estuprador ou estelionatário. Parte da elite brasileira milita no tropicalismo equívoco de que corrupção ruim é a dos outros, mas não a dos que frequentam os mesmos salões que ela. Infelizmente, somos um país em que alguns ainda cultivam corruptos de estimação. Mas há um sentimento republicano e igualitário crescente, capaz de vencer essa triste realidade.
Naturalmente, é preciso tomar cuidado para evitar a criminalização da política. Em uma democracia, política é gênero de primeira necessidade. Seria um equívoco pretender demonizá-la e, mais ainda, criminalizá-la. A vida política nem sempre tem a racionalidade e a linearidade que uma certa ânsia por avanços sociais e civilizatórios exige. O mundo e o Brasil viveram experiências históricas devastadoras com tentativas de governar sem política, com a ajuda de militares, tecnocratas e da polícia política. Porém, assim como não se deve criminalizar a política, não se deve politizar o crime. Não há delito por opiniões, palavras e votos. Nessas matérias, a imunidade é plena. No entanto, o parlamentar que vende dispositivos em medidas provisórias, cobra participação em desonerações tributárias ou canaliza emendas orçamentárias para instituições fantasmas (e embolsa o dinheiro), comete um crime mesmo. Não há como “glamourizar” a desonestidade.
A corrupção tem custos elevados para o país. De acordo com a Transparência Internacional, em 2016 o Brasil foi o 96º colocado no ranking sobre percepção da corrupção no mundo, entre 168 países analisados. Em 2015, havíamos ocupado o 79º lugar. Em 2014, o 69º. Ou seja: pioramos. Estatísticas como essas comprometem a imagem do país, o nível de investimento, a credibilidade das instituições e, em escala sutil e imensurável, a autoestima das pessoas. A corrupção acarreta custos financeiros, sociais e morais.
No tocante aos custos financeiros, apesar das dificuldades de levantamento de dados – subornos e propinas geralmente não vêm a público –, noticiou-se que apenas na Petrobras e empresas estatais investigadas na Operação Lava-jato os pagamentos de propina chegaram a 20 bilhões de reais. Levantamento feito pela Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP projeta que até 2,3% do PIB são perdidos a cada ano com práticas corruptas, o que chegaria a 100 bilhões de reais por ano. Os custos sociais também são elevadíssimos. Como intuitivo, a corrupção é regressiva, pois só circula nas altas esferas e ali se encontram os seus grandes beneficiários. Porém, e muito mais grave, ela compromete a qualidade dos serviços públicos, em áreas de grande relevância como saúde, educação, segurança pública, estradas, transporte urbano etc. Nos anos de 2015 e 2016, ecoando escândalos de corrupção, o PIB brasileiro caiu 7,2%.
O pior custo, todavia, é provavelmente o custo moral, com a criação de uma cultura de desonestidade e esperteza, que contamina as pessoas ou espalha letargia. O modo de fazer política e de fazer negócios no país passou a funcionar mais ou menos assim: (i) o agente político relevante indica o dirigente do órgão ou da empresa estatal, com metas de desvio de dinheiro; (ii) o dirigente indicado frauda a licitação para contratar empresa que seja parte no esquema; (iii) a empresa contratada superfatura o contrato para gerar o excedente do dinheiro que vai ser destinado ao agente político que fez a indicação, ao partido e aos correligionários. Note-se bem: este não foi um esquema isolado! Este é o modelo padrão. A ele se somam a cobrança de propinas em empréstimos públicos, a venda de dispositivos em medidas provisórias, leis ou decretos; e os achaques em comissões parlamentares de inquérito, para citar alguns exemplos mais visíveis. Nesse ambiente, faz pouca diferença saber se o dinheiro vai para a campanha, para o bolso ou um pouco para cada um. Porque o problema maior não é para onde o dinheiro vai, e sim de onde ele vem: de uma cultura de desonestidade que foi naturalizada e passou a ser a regra geral.
A cidadania, no Brasil, vive um momento de tristeza e de angústia. Uma fotografia do momento atual pode dar a impressão de que o crime compensa e o mal venceu. Mas seria uma imagem enganosa. O país já mudou e nada será como antes. A imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo que hoje existe na sociedade brasileira é uma realidade inescapável. Uma semente foi plantada. O trem já saiu da estação. Há muitas imagens para ilustrar a refundação do país sobre novas bases, tanto na ética pública quanto na ética privada. É preciso empurrar a história, mas ter a humildade de reconhecer que ela tem o seu próprio tempo. E não desistir antes de cumprida a missão. Li recentemente em um cartaz uma frase cuja autoria é disputada, mas que é uma boa alegoria para traduzir o espírito dessa hora: “Viver não é esperar a tempestade passar. Viver é aprender a dançar na chuva”. E seguir em frente.
Conclusão
A seguir, algumas reflexões e proposições acerca desse momento em que a Constituição brasileira chega a uma idade mais madura, em um país com o ciclo de desenvolvimento econômico, social e civilizatório ainda incompleto. Ideias que aproveitem a experiência acumulada e que ajudem a retificar as escolhas que nos mantêm como um país de renda média, com o futuro constantemente adiado.
Apesar de muitos avanços e conquistas que merecem ser comemorados, ainda não fomos capazes de enfrentar algumas das causas importantes do atraso, da pobreza e da corrupção. Dentre elas se inclui (i) um Estado que é grande demais – maior do que a sociedade pode e deseja sustentar –, extremamente ineficiente e apropriado privadamente; e (ii) um sistema político viciado, com incentivos equivocados, que extrai o pior das pessoas. Sem equacionarmos algumas das causas estruturais dos nossos problemas, eles se renovarão e se perpetuarão. A mera repressão criminal, ainda que fosse altamente eficaz – e está longe de ser –, jamais poderá ser vista como o melhor caminho para a transformação. É preciso desarmar os mecanismos que estimulam os comportamentos desviantes.
A referência ao tamanho do Estado não tem por alvo programas e redes de proteção social, a despeito dos problemas de gestão. A crítica volta-se contra estruturas onerosas, que transferem renda dos mais pobres para os mais ricos — como o sistema de previdência e o sistema tributário, por exemplo —, assim como o excesso de cargos em comissão, o clientelismo e a distribuição discricionária e seletiva de benesses. A tudo se soma uma cultura cartorial e burocrática, sem controles mínimos de desempenho e de resultados das políticas públicas adotadas.
Algumas ideias desenvolvidas e demonstradas por Daron Acemoglu e James A. Robinson, em um livro notável intitulado “Why Nations Fail”, ajudam a compreender as razões que levam os países à pobreza e à prosperidade. Segundo os autores, essas razões não se encontram – ao menos na sua parcela mais relevante – na geografia, na cultura ou na ignorância do que seja a coisa certa a se fazer. Encontram-se, sobretudo, na existência ou não de instituições econômicas e políticas verdadeiramente inclusivas, capazes de dar a todos segurança, igualdade de oportunidades e confiança para inovar e investir. A análise e os diagnósticos desses dois autores estão refletidos nessas considerações finais.
Países que se tornaram prósperos são aqueles que conseguiram, progressivamente, distribuir adequadamente direitos políticos e oportunidades econômicas, com um Estado transparente e responsivo aos cidadãos. Países que se atrasaram na história foram os conduzidos por elites extrativistas, que controlam um Estado apropriado privadamente, que distribui por poucos os frutos do progresso econômico limitado que produzem. Os mecanismos para tanto incluem monopólios, concessões, empresas estatais e profusão de cargos públicos. A comparação que Acemoglu e Robinson fazem entre a experiência histórica da Inglaterra — com a quebra do absolutismo e a abertura econômica no século XVII — e da Espanha, que seguiu trajetória exatamente inversa, ilustra o argumento de maneira emblemática.
Elites extrativistas e autorreferentes organizam a sociedade para o seu próprio benefício, às expensas da massa da população. Ao procederem assim, não criam um país em que as pessoas se sintam efetivamente livres e iguais. Sem terem o nível de respeito e incentivos adequados, os cidadãos desenvolvem uma relação de desconfiança com o Estado e tornam-se menos seguros, menos solidários e menos ousados. Ou seja: não desenvolvem a plenitude do seu talento, ambição e inventividade.
Nesse contexto, a sociedade e seus empreendedores não são capazes de promover a destruição criativa da ordem vigente, substituindo-a com criatividade, inovações e avanços sociais. A estagnação se torna inevitável. A consequência de instituições econômicas e políticas extrativistas é a impossibilidade do desenvolvimento verdadeiramente sustentável. Pode haver ciclos de crescimento, mas ele será sempre limitado e seus frutos apropriados por poucos. Triste como possa parecer, a narrativa acima não se distancia de modo significativo da realidade brasileira.
A parte boa dessa história é que conjunturas críticas podem liberar a energia capaz de produzir grandes mudanças institucionais. Conjunturas críticas envolvem um conjunto de eventos relevantes que abalam o equilíbrio político e econômico da sociedade. É inegável que o Brasil vive um desses momentos, decorrente da tempestade ética, política e econômica que se abateu sobre o país nos últimos anos. É possível —apenas possível — que estejamos vivendo um momento de refundação, um novo começo.
Desenvolveu-se na sociedade, nos últimos tempos, um grau sem precedente de conscientização em relação à corrupção sistêmica, à deficiência nos serviços públicos, à péssima governança e à má distribuição de riqueza poder e bem-estar. Não é fora de propósito imaginar que essa possa ser a energia transformadora de instituições extrativistas em instituições inclusivas. Aos trinta anos de democracia, temos uma chance de nos repensarmos e nos reinventarmos como país, com uma revolução pacífica capaz de elevar a ética pública e a ética privada. Não é uma tarefa fácil, mas pode ser um bom projeto para quem não tenha optado por ir embora. Recentemente, ao saudar-me em um evento acadêmico, um jovem dirigente estudantil me disse: “Eu não quero viver em outro país. Eu quero viver em outro Brasil”. Pareceu-me uma boa ideia.